O vendedor de laranjas
 



Contos

O vendedor de laranjas

Cláudia de Andrade


O ar morno da noite embriagava seus neurônios.

Maria Cecília sentia o corpo avantajado grudar, se liquefazer nos lençóis.

Os dias quentes pareciam piores na casa de praia dos avós. Tudo ali lembrava eles, o espaço pertencia ao velho casal, que se bastava.

Era assim. Todas as manhãs, antes de abrir a janela a adolescente aguçava os ouvidos para escutar o que os dois falavam. Se o joelho do avô doía, era sinal de chuva. Davam uma volta danada, usavam do artifício da pausa, até cavar a oportunidade - falar da vida da filha e do genro, os pais de Maria Cecília. O velhaco elucubrava, a avó contribuía e ambos chafurdavam a vida alheia como dois detetives. A neta espiava entre as venezianas da janela, retardando a aparição na vida deles.

Via o par de idosos ainda enamorados, compartilhando da cuia de chimarrão. A térmica sobre a coxa do avô, que distraído observava os pássaros na calçada. A cabeça a mil: "Aí tem!" insinuando qualquer coisa sobre a idoneidade da própria filha, com quem não falava a mais de três anos. Maria Cecília era conhecedora dos motivos, mas estava se lixando para os pais, eles discutiam muito, certeza que o casamento beirava a separação. Havia se acostumado com o gênio do avô - militar da reserva, ele sempre que podia se gabava por ter retidão, por ser exemplo de caráter. Sua metade, uma senhora bem cuidada piscava os olhos com idolatria, saboreando cada frase.

Maria Cecília sentia compaixão e raiva pelo casal. Será que a vida se resumia àquilo - sentar no gramado ralo em frente a casa - sob a aroeira e dividir a bebida incandescente como se o mundo fosse deles dois? Talvez ela quisesse ter um pouco daquilo, quando as férias tivessem fim. Quando Juca - o rapaz de olhos azuis, que empurrava um carrinho de mão carregado de laranjas-de-umbigo - novamente chamasse no interfone da mansão dos pais dela. Maria Cecília contava os dias, na esperança de que o jovem vendedor a convidasse para sair.

Mas para onde iria com um rapazola que nem ele? Tão diferente do avô de voz retumbante, de tronco e cabeça alinhados, a coluna ereta, apesar do sobrepeso dos anos. Juca, o vendedor, era também o avesso do pai, um homem atarracado, com pose de galã de novela mexicana - como descrevera sua avó para o avô e ambos riram. Maria Cecília andou de costas, na sequência bateu a perna no bidê, mas não esbravejou. Não ali!

Havia regras no lar e ela as sabia desde os quatro anos de idade, quando passou a frequentar o casarão no litoral. Lembrou dos três primos, que não vinham mais, da tia que não tinha tempo para férias, da tia-avó que fazia croché na varanda, mas havia falecido há dois verões. Havia um primo da mãe, um homem de pele morena e tez iluminada, "filho de criação" como reforçava a avó, sempre que podia, nas conversas ensaiadas. Tio Norberto era legal com ela. Jogavam pife, vôlei e frisbee, mas sempre sobre a supervisão de alguém.

Maria só lembrava dele nos verões.

Vestiu-se e caminhou até a mesa de café, ainda posta. Catou um copo e pôs leite desnatado nele, depois acrescentou duas colheres de sopa generosas de um achocolatado barato. Misturou e viu os grânulos separados, dispensou o pão e optou por descascar uma banana. Se tio Norberto estivesse ali arranjaria algo para entretê-la. Os dois tomariam aquele café minguado e se sentiriam fartos até a hora do almoço.

Maria avistou o velho par à soleira da porta.

A avó reclamou porque agora o copo ia ficar com gosto de leite.

O avô aproveitou a deixa para questionar os hábitos da neta. Sugeriu que esquecesse o celular e fosse conversar com a filha da vizinha, que tinha 10 anos.

Maria Cecília tirou a mesa. Limpou os farelos do pão que não comeu. Lavou a louça e varreu a cozinha. Enquanto varria, pensava em Juca, o vendedor de laranjas.


Cláudia de Andrade nasceu em Esteio, Rio Grande do Sul. Ao longo dos anos sempre se
dedicou à escrita. Em 2001 fez Oficina de Criação Literária com Luiz Antônio de Assis Brasil. Já participou de vários concursos literários e teve contos publicados, alguns premiados. O mais recente é XVI Concurso Literário Mário Quintana, Sintrajufe, 2020. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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